POÇO


Em muitas ocasiões da caminhada longínqua e até certo ponto breve, nesta existência, uma espécie de poço sombrio surge e ressurge inúmeras vezes... Por lá há canções gélidas aos montes e alegres, vez ou outra. Todavia, é o processo de crescimento dolorido imposto para que a canção benevolente que habita em cada ser, mantenha-se acesa para indicar a essência! Afinal de contas, a sociedade é mutante... (José Assumpção)

 O que segue abaixo é um trecho mui relevante de Rubem Alves para releitura, sempre!


"Num lugar não muito longe daqui havia um poço fundo e escuro onde, desde tempos imemoriais, uma sociedade de rãs se estabelecera. Tão fundo era o poço que nenhuma delas jamais havia visitado o mundo de fora. Estavam convencidas  que o universo era do tamanho do seu buraco.   Havia   sobejas   evidências   científicas para   corroborar   esta   teoria   e   somente   um louco,  privado dos sentidos e da razão, afirmaria    o    contrário.    Aconteceu,    entretanto, que   um  pintassilgo que voava  por ali  viu  o poço, ficou curioso, e resolveu investigar suas profundezas.   Qual   não   foi   sua   surpresa   ao descobrir as rãs!  Mais perplexas ficaram estas, pois aquela estranha criatura de penas colocava em questão todas as verdades já secularmente sedimentadas e comprovadas em sua sociedade. O  pintassilgo  morreu  de dó. Como é que as rãs  podiam viver presas em tal poço, sem ao menos a esperança de poder sair? Claro que a ideia  de sair era  absurda  para os batráquios, pois, se o seu buraco era o universo, não poderia haver um "lá fora". E o pintassilgo se pôs a  cantar furiosamente. Trinou a brisa suave, os campos verdes, as árvores copadas, os riachos cristalinos, borboletas, flores, nuvens, estrelas. . . o que pôs em polvorosa a sociedade das rãs, que se dividiram. Algumas acreditaram e começaram a imaginar como seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Coaxaram canções novas. As outras fecharam a cara. Afirmações não confirmadas pela experiência não deveriam ser merecedoras de crédito, elas alegavam. O pintassilgo tinha de estar dizendo coisas sem sentido e mentiras. E se puseram a fazer a crítica filosófica, sociológica e psicológica do seu discurso. A serviço de quem estaria ele? Das classes dominantes? Das classes dominadas? Seu canto seria uma espécie de narcótico? O passarinho seria um louco? Um enganador? Quem sabe ele não passaria de uma alucinação coletiva? Dúvidas não havia de que o tal canto havia criado muitos problemas. Tanto as rãs-dominantes quanto as rãs dominadas (que secretamente preparavam uma revolução) não gostaram das ideias que o canto do pintassilgo estava colocando na cabeça do povão. Por ocasião de sua próxima visita o pintassilgo foi preso, acusado de enganador do povo, morto, empalhado e as demais rãs proibidas, para sempre, de coaxar as canções que ele lhes ensinara. . ."  

 "Ver um mundo em um grão de areia / e um céu numa flor silvestre,/ segurar o infinito na palma da mão / e a eternidade em uma hora" (Blake).


Tornamos-nos sempre estrangeiros quando a tentativa de adentrar em território novo intimida a velha sociedade inerte. Sabe-se que o canto é ingênuo e inocente, no entanto, fere o domínio pré-estabelecido, e coloca em risco a ordem permanente daquilo que, nunca pode ser mudado.
 
JRA (o poeta da verdade).

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